O RIO

Num tempo não muito distante, alguns homens tentaram dominar a população do lugar contaminando os poços d'água. A população levantou-se numa só voz e expulsou os Dominadores de Antanho, refez os poços, limpou a água e continuou a vida. Os Dominadores, vendo que não conseguiram vencer o lugar pela força, devido aos costumes milenares daquela gente, mudaram de estratégia e misturaram-se ao povo, pedindo desculpas pelo que haviam feito. Foram aceitos com alguma desconfiança. Aos poucos, foram ocupando os espaços dos Sábios Antigos chegando a Mestres Ensinadores do lugar. Com isso, ensinavam aos jovens que havia um lugar melhor ao lado do Rio de Mananciais Inesgotáveis, onde todos seriam muito mais felizes e iguais. Os poços d'água do vilarejo não seriam suficientes para todos se continuassem vivendo ali.

Os jovens observaram que havia água para todos, e mais poços poderiam ser abertos. Mas como os Mestres Ensinadores mostravam-se mais sábios que os Sábios Antigos, que andavam calados observando tudo, os jovens entenderam que havia perigo em continuarem naquele lugar. Assim, começaram a contar essas coisas para os amigos. Suas famílias começaram a preocupar-se, pois os viam arrumando coisas para a mudança que seria inevitável. Para os jovens, o futuro seria um tormento naquele lugar e, junto ao rio, havia um manancial inesgotável de delícias do qual todos poderiam usufruir igualmente.

Aos poucos os Mestres Ensinadores ajudaram os jovens a ocupar posições de liderança no vilarejo, e os ensinamentos dos Mestres, chamados Ensinos do Bem, se espalharam ainda mais.

No entanto, a população percebia que os Ensinos do Bem pareciam não ter efeito para resolver os problemas que começavam a surgir. O lugar, antes calmo e tranquilo, começava a sofrer com brigas. Até assaltantes amedrontavam a população, coisa nunca havida até então.

Assim, devido à influência dos Mestres Ensinadores, reuniram alguns jovens do lugar e lhes deram autoridade e ordens para cuidarem da situação. Era necessário impedir que a população andasse livremente por todas as ruas. Só lhes era permitido andar a pouca distância de suas próprias casas devido aos perigos que poderiam correr indo mais longe.

Os Mestres Ensinadores convenceram os Jovens de Autoridade que os poços d'água estavam correndo perigo. Assim como eles tentaram dominar o vilarejo no passado, os Sábios Antigos poderiam fazer o mesmo para tirar sua autoridade e dominá-los novamente. Diziam que Sábios Antigos tinham pensamentos ultrapassados, que não serviam mais aos objetivos do povo e que a violência reinante era resultado das práticas ultrapassadas que eles haviam obrigado todos a seguir. Deveriam mudar-se para perto do Rio de Mananciais Inesgotáveis, onde seriam realmente felizes e viveriam em igualdade. Mas os Jovens de Autoridade não sabiam como defender os poços sem os conselhos dos Sábios Antigos, e foram aos Mestres Ensinadores para aprender com eles.

Os Mestres Ensinadores disseram que precisavam chamar os Fratelos Úteis, irmãos por afinidade dos Mestres Ensinadores, que fariam o trabalho com sabedoria ainda maior. E assim fizeram.

Algum tempo depois, os Fratelos Úteis espalharam a notícia de que os Sábios Antigos estavam contaminando os poços de alguma maneira desconhecida. Seria preciso evitar que a água contaminada chegasse à população, assim, resolveram restringir o uso da água. O vilarejo ficou alvoroçado e todos começaram a pensar que deveriam mudar o mais rapidamente possível para o Rio de Mananciais Inesgotáveis, pois, caso contrário, todos poderiam morrer por causa da maldade dos Sábios Antigos.

Alguns dentre o povo alertaram que os Sábios Antigos não estavam envenenando a água dos poços, mas não foram ouvidos. Então, os Sábios Antigos sairam às ruas e começaram a alertar a população que o Rio de Mananciais Inesgotáveis era uma farsa, o lugar era cheio de pântanos com animais selvagens e que a vida ali seria impossível.

Os Mestres Ensinadores ficaram furiosos e mandaram chamar os Jovens de Autoridade. Disseram-lhes que tomassem providências urgentes a fim de que a população não ficasse atemorizada pelas mentiras dos Sábios Antigos. Para evitar que ouvissem as mentiras, ordenaram que a população não mais saísse de suas casas. Todas as necessidades seriam supridas pelos Fratelos Úteis, que visitariam as casas levando comida, água racionada, remédios e roupas. A população amedrontada prontamente obedeceu.

Pouco tempo depois, os Fratelos Úteis anunciaram que os Sábios Antigos estavam contaminando a comida e que, como eram poucos, não conseguiam vigiar todos os armazéns. Então, ordenaram que a população comesse menos, conforme o conhecimento dos Mestres Ensinadores, e todos acabariam bem.

Alguns dentre o povo perguntavam por que os Jovens de Autoridade não agiam expulsando os Sábios Antigos do lugar, assim todos poderiam voltar à vida normal, sem perigo.

Os Fratelos Úteis disseram que seria impossível expulsá-los, pois isso causaria confusão e assustaria o povo. Estavam fazendo todo o possível para iniciar a mudança da população para perto do Rio de Mananciais Inesgotáveis. Ensinaram que o rio era o futuro de todos, mesmo que ninguém quisesse mudar, pois a Civilização Longínqua morava perto de rios caudalosos e não tinha necessidade de nada. Era um futuro garantido, inevitável e brilhante.

Os Sábios Antigos, vendo que eram vítimas de mais mentiras, deixaram de apenas observar, saíram às ruas novamente e, gritando, anunciavam à população que se lembrasse de quem havia tentado dominá-la antes. Provaram o que diziam com documentos do Guardião da Verdade, mas não foram ouvidos novamente. Os livros de História Passada tinham sido substituídos pelos novos, cuja verdadeira história era contada de forma invertida: os Heróis da Segurança eram os Bandidos da Dor e os Bandidos da Dor eram, agora, os Heróis da Segurança. Assim, a população não tinha mais conhecimento para saber se os Sábios Antigos falavam a verdade ou mentiam.

Os Mestres Ensinadores, sabendo do que ocorrera, convocaram imediatamente os Jovens de Autoridade para que saíssem às ruas e impedissem os Sábios Antigos de falar ao povo, pois estavam causando transtornos que acabariam por gerar revolta na população.

Os Jovens de Autoridade saíram e anunciaram tudo conforme disseram os Mestres Ensinadores, e foram além: ordenaram que a população não abrisse mais as janelas de suas casas para entrar o sol, pois os Sábios Antigos poderiam invadí-las para anunciar mentiras que causariam a Revolta Geral.

As pessoas do vilarejo confiavam plenamente nos Mestres Ensinadores e nos Jovens de Autoridade, e certos estavam de que os Fratelos Úteis os ajudariam na mudança para o Rio de Mananciais Inesgotáveis brevemente. Assim, obedeceram às ordens prontamente, mesmo vendo que não tinham mais liberdade para coisa alguma. Se era necessário perder a liberdade para ter segurança, então, concordavam que era a melhor solução.

Mas o tempo passava e as restrições começavam a atormentar a população mais e mais. Os Fratelos Úteis, vendo que a população andava irritada, como chegasse o inverno, ordenaram que suportassem mais um pouco as provações, pois os Sábios Antigos haviam eliminado as árvores de lenha do vale e não teriam como se aquecer naquela estação.

Os Sábios Antigos foram até o Guardião da Verdade e lá apanharam quadros pintados pelos Pintores da Realidade para mostrar à população que o Rio de Mananciais Inesgotáveis era uma farsa e que todos seriam escravos dos Dominadores de Antanho.

Vendo que corriam perigo de serem desmascarados, os Mestres Ensinadores ordenaram aos Fratelos Úteis que começassem a quebrar as paredes das casas sem deixar que a população os reconhecesse. Assim, vestiram-nos com as vestes dos Sábios Antigos.

A população, que agora só podia ver a luz do sol através das frestas das janelas, começou a ver a sombra dos Sábios Antigos passando perto de suas casas e, à noite, começaram a ouvir barulhos estranhos nas paredes.

Pensando tratar-se de animais selvagens, coisa que nunca havia ocorrido até então, ficaram apavorados e chamaram pelos Fratelos Úteis, que não responderam.

Vendo que poderiam ser atacados pelas Feras Desconhecidas, resolveram que mudariam para perto do Rio de Mananciais Inesgotáveis assim que o sol brilhasse no céu do vilarejo. Para isso, passaram um papel escrito por debaixo da porta de suas casas com os seguintes dizeres: Nós confiamos em vocês. Guiem-nos ao Rio de Mananciais Inesgotáveis assim que o sol nascer.

Silenciosamente, os Fratelos Úteis apanharam os papéis das casas e correram aos Mestres Ensinadores com a novidade. Todos se alegraram e, convocando os Jovens de Autoridade, ordenaram a mudança para o raiar do dia.

Pela manhã, a população aprontava-se para sair de suas casas quando viu os Sábios Antigos sentados no banco da Praça Principal, amarrados com grossas cordas. Estavam magros e a população começou a pensar que seria impossível serem eles os atormentadores do lugar.

Imediatamente, os Mestres Ensinadores chamaram a atenção da população e reuniram todo o povo longe da Praça Principal. Com a ajuda dos Fratelos Úteis, começaram a mudança para perto do Rio de Mananciais Inesgotáveis.

O caminho era difícil, cheio de pedras, o que obrigava a população a carregar nas costas todos os seus pertences. Era impossível usar os animais e as carroças. Todos iam a pé, cantando e contando com sua nova morada. Os Sábios Antigos foram deixados para trás e não foram mais vistos entre eles.

Assim que chegaram ao Rio de Mananciais Inesgotáveis, várias pessoas começaram a afundar nos pântanos, e foram deixadas lá, pois os Jovens de Autoridade ordenaram que todos deviam seguir em frente até o começo do Penhasco das Perfídias, onde seria sua nova casa.

A população, atônita, perguntou por que não poderiam ficar perto do Rio de Mananciais Inesgotáveis, a terra prometida. Os Mestres Ensinadores disseram que os Sábios Antigos haviam contaminado as águas do rio, por isso foram presos e abandonados para morrer no antigo vilarejo.

A população acreditou e foi conduzida às cavernas do Penhasco das Perfídias. Não tinham como arrumar seus pertences, pois todos teriam que viver no mesmo lugar, compartilhando tudo com todos, igualmente. Não teriam liberdade, pois os animais selvagens habitavam perto dos penhascos sempre à procura de caça para se alimentar.

Então, com a força dos Jovens de Autoridade, ordenaram que o povo começasse a trabalhar para obter sustento para os Mestres Ensinadores e para os Fratelos Úteis, que se manteriam em constante vigilância para o caso de algum Sábio Antigo conseguir escapar através de alguma magia desconhecida.

Depois de algum tempo, trabalhando como escrava, a população começou a revoltar-se por sua condição e arquitetou um plano de fuga: queriam retornar ao antigo vilarejo, onde viviam bem mesmo perto dos Sábios Antigos, que já deveriam estar mortos. Mas, segundo a estratégia dos Mestres Ensinadores, havia entre o povo os Mantenedores da Mudança, que denunciaram os planos de fuga aos Jovens de Autoridade.

Os Fratelos Úteis foram chamados e açoitaram alguns dentre o povo, o que causou mais revolta aos já cansados escravos.

Combinaram secretamente que agiriam sem demora e, na mesma noite, levantaram-se e tomaram de assalto a casa dos Jovens de Autoridade, procurando as armas de caça que lhes foram confiscadas ainda no vilarejo. Como não encontrassem nada, tentaram fugir imediatamente, mas foram pegos pelos Dominadores de Antanho que vinham para dominar sobre eles. Todos foram mortos e nenhum escapou, exceto os Jovens de Autoridade, que vinham das pessoas dentre o povo.

Seus corpos ficaram ao relento, sem ninguém que os enterrasse. Os Jovens de Autoridade indignaram-se e perguntaram aos Mestres Ensinadores o que seria deles, afinal. Então, foram levados ao interior da Caverna da Sabedoria e lá aprenderam que eles eram os melhores entre o povo, por isso foram poupados. Retornariam ao antigo lugar, agora rebatizado de Vilarejo da Esperança, e todos seriam felizes sem a presença dos Sábios Antigos e da população, que só lhes causara problemas intermináveis. Foram mortos pois eram culpados pela situação insustentável de revolta que causaram. Não quiseram aguardar as mudanças finais, que os levariam a morar eternamente ao lado do Rio de Mananciais Inesgotáveis, portanto, não poderiam mais viver ao lado dos Lutadores da Paz.

E os Jovens de Autoridade voltaram carregando todos os pertences dos mortos nas costas, pois os animais não conseguiam andar pelos íngremes caminhos das Montanhas da Escuridão.

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