quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Contos do Vigário - Tenho um emprego!

- Mãe, consegui um emprego!
- Que bom, filho! Onde?
- No call center de uma empresa.
- E o serviço é bom? O que você vai fazer lá?
- Eu vou atender o telefonema dos clientes que têm alguma coisa a reclamar.
- E você vai ajudar as pessoas resolvendo os problemas delas, então? Isso é bom.
- É... mais ou menos. Nem sempre a gente resolve o problema das pessoas.
- E o que as pessoas dizem quando você explica que não pode resolver o problema delas?
- Eu não posso falar que não posso resolver o problema delas, mãe. Eu só posso dizer que estamos tomando providências.
- E a empresa está mesmo tomando alguma providência?
- Não. Mas isso não interessa.
- Então você tem que mentir, filho?
- É, mãe. Mas a verdade é uma coisa relativa. Não é problema meu. Faço o que me mandam e recebo meu salário. Tenho um emprego, isso é que importa.
- Não, filho. Ter nunca foi mais importante do que ser, e continua não sendo.
- Ô mãe! Eu preciso de dinheiro. Como é que eu faço a minha vida sem dinheiro?
- Filho, eu sei que o dinheiro é importante, mas não é tudo. Existem outros empregos. Uma pessoa pode matar outra por dinheiro. Pense um pouco, o que esse criminoso perdeu para ter o dinheiro?
- O criminoso não perdeu nada. Quem perdeu foi o outro. O criminoso é uma vítima da sociedade.
- Não, meu filho. O criminoso não é uma vítima da sociedade, ele é quem toma as próprias decisões. O assassino perdeu a honra e a força. Só os fracos são oprimidos pelas ideologias. Só os fracos não sentem nada quando mentem. Só os fracos enganam-se a si mesmos por alguma coisa que se pareça com um ganho momentâneo. Esse ganho, por maior que seja, se torna ainda maior e mais forte do que eles.
- Nossa, mãe, que discursinho burguês!
- Burguês?! E você sabe o que é isso?
- Claro que sei. Burguês é a pessoa moralista, que acha que tem uma verdade, que é retrógrada, que pensa assim como você, mãe.
- Filho, onde você aprendeu essas monstruosidades? Aqui em casa é que não foi.
- Nem podia ser, mãe. Eu não vou ouvir essas lições de moral burguesa que você diz. O mundo tem que progredir, tem que evoluir. Você fica aí pensando no passado, na honra, na moral. Isso, a verdade, é tudo relativo. Uns têm; outros, não.
- Meu filho, se a verdade não existe, a mentira também não. Então, tudo o que você aprendeu até hoje é o quê?
- Não sei ainda, mãe. Mas isso é revolucionário. Um dia, depois que essa cultura burguesa for destruída, virá uma nova sociedade melhor, um mundo melhor e igualitário, sem classes, sem moral burguesa. Será um povo verdadeiramente livre.
- Duas coisas: se a verdade é relativa, como será verdadeiramente livre? Nessa sociedade, vamos poder matar quem nós quisermos?
- Matar, pra quê? Numa sociedade livre ninguém mata ninguém. Todo mundo vive em paz.
- Ah, que bom! Então haverá uma regra moral, não é, filho?
- Não, mãe. Moral é coisa burguesa. As leis vão funcionar, as pessoas serão mais justas.
- Que bom. E o que acontece com quem não cumprir as leis?
- Não sei ainda, mas a revolução vai ensinar tudo isso a seu tempo.
- Filho, se as pessoas não matam umas às outras é porque têm uma regra moral. Conforme você diz, e eu não entendo como pode funcionar, a regra moral é a liberdade. E quem é essa tal revolução que vai ensinar essas coisas?
- Não é assim, mãe. A revolução dirá seus fins e a liberdade só funciona com a igualdade.
- Ah, que bom! E você conhece alguma coisa igual no mundo?
- Fácil! Dois mais dois é igual a quatro.
- Mas essa também é uma verdade burguesa. Como é que você pode acreditar nisso?
- Ah, então é cinco.
- Oi! Onde está meu filho?
- É... acho que não sou seu filho.
- Acho que a ciência diz que é. Além de todo mundo que conhece a nossa família.
- Então vamos mudar a ciência burguesa também!
- Tá. Eu não vou prosseguir nessa tortura mental. E o salário, é bom?
- Não é o que eu mereço.
- Mas o mérito não é uma construção burguesa? Ah, esquece, filho.
- Vou ser castigado por isso?
- Vai, sim. Vá para o seu quarto e trate de procurar seu cérebro e seu coração. Se não estiverem por lá, procure na escola. Ninguém perde essas coisas sozinho; alguém tirou isso de você. E só volte depois de ter encontrado os dois.  Se não encontrar, vou ter que usar a minha mão burguesa na sua orelha revolucionária.